Há dois tipos de ateus: os que não acreditam que
Deus existe e os que acreditam piamente que Deus não existe. Os
primeiros relutam em crer naquilo de que não têm experiência. Os
segundos não admitem que possa existir algo acima da sua experiência. A
diferença é a mesma que há entre o ceticismo e a presunção de
onissapiência.
Acima da distinção de ateus e crentes existe a
diferença, assinalada por Henri Bergson, entre as almas abertas e as
almas fechadas. Vou explicá-la a meu modo. Como tudo o que sabemos é
circunscrito e limitado, vivemos dentro de uma redoma de conhecimento
incerto cercada de mistério por todos os lados. Isso não é uma situação
provisória. É a própria estrutura da realidade, a lei básica da nossa
existência. Mas o mistério não é uma pasta homogênea. Sem poder
decifrá-lo, sabemos antecipadamente que ele se estende em duas direções
opostas: de um lado, a suprema explicação, a origem primeira e razão
última de todas as coisas; de outro, a escuridão abissal do
sem-sentido, do não-ser, do absurdo. Há o mistério da luz e o mistério
das trevas. Ambos nos são inacessíveis: a esfera de meia-luz em que
vivemos bóia entre os dois oceanos da claridade absoluta e da absoluta
escuridão.
O simbolismo imemorial dos estados "celestes" e
"infernais" demarca a posição do ser humano no centro do enigma
universal. Essa situação - a nossa situação - é de desconforto
permanente. Ela exige de nós uma adaptação ativa, dificultosa e
problemática. Daí as opções da alma: a abertura ao infinito, ao
inesperado, ao heterogêneo, ou o fechamento auto-hipnótico na clausura
do conhecido, negando o mais-além ou proclamando com fé dogmática a sua
homogeneidade com o conhecido. A primeira dá origem às experiências
espirituais das quais nasceram os mitos, a religião e a filosofia. A
segunda leva à "proibição de perguntar", como a chamava Eric Voegelin: a
repulsa à transcendência, a proclamação da onipotência dos métodos
socialmente padronizados de conhecer e explicar.
A religião é uma expressão da abertura, mas não é a
única. A simples admissão sincera de que pode existir algo para lá da
experiência usual basta para manter a alma alerta e viva. É possível
ser ateu e estar aberto ao espírito. Mas o ateu militante, doutrinário,
intransigente, opta pela recusa peremptória do mistério, deleitando-se
no ódio ao espírito, na ânsia de fechar a porta do desconhecido para
melhor mandar no mundo conhecido.
Dostoiévsky e Nietzsche bem viram que, abolida a
transcendência, só o que restava era a vontade de poder. Aquele que
proíbe olhar para cima faz de si próprio o topo intransponível do
universo. É uma ironia trágica que tantos adeptos nominais da liberdade
busquem realizá-la através da militância anti-religiosa. As religiões
podem ter-se tornado violentas e opressivas ocasionalmente, mas a
anti-religião é totalitária e assassina de nascença. Não é uma
coincidência que a Revolução Francesa tenha matado dez vezes mais gente
em um ano do que a Inquisição Espanhola em quatro séculos. O genocídio
é o estado natural da modernidade "iluminada".
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